quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O PARAÍSO E O INFERNO

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UMA AMIGA minha que tem muita graça e que é naturalmente muito divertida na sua forma saudável de gozar a vida fez questão de me explicar, com clareza, e segundo a sua própria experiência pessoal, a diferença entre céu e inferno. Não há engano possível e não ofende nenhum conceito que possa ter sido aprendido em diferentes catequeses. E põe-nos a sorrir e deixa-nos a abanar a cabeça em concordância com aquilo que ela sugere. Ora queiram fazer o obséquio de ler:

“O Paraíso é aquele lugar onde o humor é britânico, os cozinheiros são franceses, os mecânicos são alemães, os amantes são portugueses e tudo é organizado pelos suíços; o Inferno é aquele lugar onde o humor é alemão, os cozinheiros são britânicos, os mecânicos são franceses, os amantes são suíços e tudo é organizado pelos Portugueses.”

Todos nós, duma maneira ou de outra, tivemos estas diferentes experiências e concordamos com a minha amiga que as expõe no seu conjunto, enaltecendo qualidades, num caso, ou denunciando fraquezas e apontando imperfeições, no outro.

A verdade é que algumas destas especialidades nos tocaram por obra e graça do destino, nunca por escolha pessoal, talvez exceptuando amantes e cozinheiros, onde fazemos questão de exercer o nosso direito de escolha, de molde a tirarmos o maior proveito e conhecermos o maior prazer.

Quiçá os japoneses tenham disputado aos alemães a sua excelência na mecânica, e também a sua culinária, com as tempuras e suchis, compita hoje com a cozinha dos franceses, mas diz-nos a experiência e mostra-nos a vida que ainda vale a pena acreditarmos na “deutsche technology”, quando trocamos de carro, ou que é sempre bom perder-nos nas delícias elaboradas dum gostoso “coq au vin” do mais simples dos “bistrots”.

No capítulo de amantes não é bem assim, pois foi moda nos tempos da minha juventude coleccionarmos experiências internacionalistas, com um afã tão desenfreado em certos casos que mais parecia a fase final dum campeonato do mundo de futebol, com as suas fases de grupos e eliminatórias. Para tal muito contribuíram o turismo interno e externo nas férias de Verão e foram uma ajuda decisiva os campos de férias da apanha do tomate ou os acampamentos internacionais das organizações juvenis onde os nossos pais acreditavam que estávamos a aprender línguas, entre outras disciplinas. Ainda bem que assim foi nesse período, pois logo Deus Nosso Senhor nos castigaria com a maldição da sida, tirando aos jovens de então, e aos infelizes de hoje, esse prazer natural, competitivo e muitas vezes inesperado e intercultural, sem terem de vestir um “capot anglais” como hoje a saúde pública e o bom senso recomendam que se faça.
Desde então que se passou a diminuir as internacionalizações, abandonando os jovens aquele prazer de coleccionar nacionalidades experimentadas. Imagino que hoje, e com as devidas cautelas, o programa Erasmus dê o seu válido contributo para a miscigenação entre os tristes jovens europeus actuais, para que estes não se preocupem unicamente com o desemprego e com a progressão nas respectivas carreiras, para além do futuro da Europa comunitária e da sua orgulhosa moeda, o Euro.

Enfim, respondi à minha amiga concordando com ela no que podia e sabia e prometendo-lhe que tenciono experimentar algumas modalidades a que ela se refere. Façam os meus respeitáveis leitores o favor de também se sentirem livres para executarem as suas experiências, dando-nos posterior conta da sua concordância ou discordância com as opiniões que, com tanta graça, aqui ficam expressas por esta minha amiga!
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(Por sua decisão pessoal o autor deste texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico.)
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«Mais Alentejo» de Janeiro de 2012

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Método

A MELHOR aluna do nosso ensino secundário teve média de 20, não trabalhou nunca com computadores nem máquinas de calcular, decorou a tabuada e poemas da língua portuguesa e diz que a sua rotina era estudar a tempo inteiro.”Entreguei-me aos livros de corpo e alma e tive de abdicar de algumas coisas mas não estou arrependida”, diz ela.

Suzete Marli da Cruz tem hoje 18 anos e viveu em Lamego, onde frequentou o Colégio da Imaculada Conceição, até ao 9.º ano, e o Colégio de Lamego até ao 12.º.

“Sempre tive boas notas mas não me caíram do céu”, confessa para elogiar as religiosas do Colégio da Imaculada, “que nunca facilitaram nem usaram modernices. Tudo foi à custa de muito, muito trabalho”., explica esta jovem que gosta de ser conhecida por Marli e que hoje estuda Medicina no Porto.

Marli Cruz recebeu o Prémio da Casa de Cultura José Pinto Peixoto, ao qual podiam concorrer todos os finalistas do ensino secundário de 2007/2008. Para a atribuição do prémio, de cinco mil euros, arrebatado por Marli Cruz, foram apreciadas 10 candidaturas, quatro com média final de 20 valores, cinco com 19 e uma com 18. Marli não sabe o que vai fazer com os mil euros do prémio.

“Não posso concordar com a política de facilitismo adoptada oficialmente”, diz Marli.”Trabalhar é a única palavra de ordem interessante e enriquecedora”, conclui.

Recordando com saudade os anos que passou no Colégio da Imaculada Conceição Marli, que ainda hoje se esforça por se integrar e adaptar ao novo ritmo da Faculdade de Medicina, não tem dúvidas em considerar e afirmar que foi naquele Colégio “que me deram as bases para eu percorrer as estradas da vida”

Como? Ela explica: “Ensinaram-me o que é integridade, ajudaram-me a ser sempre íntegra e responsável. Sempre tive consciência do que era a minha responsabilidade que vinha à frente de todo o resto. E depois ensinaram-me a ser metódica e a escolher e adoptar um método de estudo, um método de trabalho, um método de vida. Assim, o trabalho dá prazer e aprende-se com muito menos esforço do que sucede com a maioria dos nossos jovens a quem ensinam tão pouco.”

Não discuto o mérito das Irmãs do Imaculada Conceição. Quem sou eu para o fazer, além de acreditar em cada uma das palavras da Marli?! Claro que tudo o que ela refere é da maior importância, mas lembro a opinião de alguém que durante algum tempo, por necessidade de sobrevivência, foi professor do secundário onde teve um único aluno de 20 valores. Diz ele: ”Não me venham dizer que um bom aluno precisa dum bom professor.Eu era um professor medíocre e aquele aluno era absolutamente excepcional. Para ser bom aluno faz falta inteligência, curiosidade, ler muito e saber estudar”.

Mas não foi isso que a Marli disse? Ensinar tais coisas aos miúdos e aos professores deve ajudar muito. Deve ser meio caminho andado…

«Mais Alentejo» de Dezembro 2011

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A infelicidade caucasiana

COM OS INCIDENTES na Geórgia, as atenções gerais desviam-se da crise universal do capitalismo para o“nacionalismo russo”.que não quer mudar o mundo nem reeditar as ambições das aventuras de Pedro o Grande a Leonidas Brejnev.

Não acredito que Medvedev nem Putin desejem reconquistar o velho espaço soviético, nem que a Geórgia seja a primeira etapa na corrida à Ucrânia antes da volta à Crimeia. Mas acredito que possa ser o princípio duma grande maçada para nós todos, com novas crispações do povo russo, convulsões bálticas, birras moldavas e ucranianos a levantarem malcriadamente a voz, com a China, a Turquia e a América indispostas e a Europa com mais enfado.

A Rússia de Putin vem de longe, da servidão das estepes seculares. O actual regime russo é uma secreta esperança democrática. Mas é um despotismo de extrema eficácia, temperado no aço do capitalismo, concebido na frieza do KGB, sem desdenhar a disciplina, a prisão, o exílio, as contas bancárias, os pipe-lines, os furos de petróleo, as minas dos diamantes,Cannes e Mónaco e outros paraísos com classe. Os russos de agora são capitalistas pirosos provenientes do socialismo com paraísos fiscais como os príncipes de 1917 nunca tiveram a dita de experimentar, nos seus exílios doridos de “John, o Chofer russo”.

O poder de Putin é-lhe conferido por um povo para quem ele reconquistou a disciplina, destruiu a anarquia e devolveu o orgulho patriótico. Isto apesar da perda da Ucrânia, que pisca o olho À NATO e da BieloRússia e sem os países da Europa oriental e com a Crimeia a querer renegociar o acesso da frota russa a Sebastopol.

A América projecta um anel anti míssil na República Checa e na Polónia e acicata um presidente georgiano sem juízo. Por outro lado, a “integridade dos Estados” continua a ser um princípio sacrossanto da paz. Daí a provocação do Kosovo e a rebelião das Ossécias e da Abkásia contra a Geórgia oferecer a Moscovo uma oportunidade única. Oxalá que depois da brutal provocação balcânica não estejamos à porta da infelicidade caucasiana.

«Mais Alentejo» de Outubro 2011

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

SALGARI IN MEMORIAM

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ESTA COISA de publicar o que se escreve tem, por vezes, aspectos muito agradáveis. Na minha última crónica nesta revista escrevi acerca da dificuldade dum leitor dos nossos dias encontrar livros de Julio Verne ou de Emilio Salgari e dei conta do que passei nas nossas livrarias para encontrar a “Viagem ao Centro da Terra”, a dificuldade em descobrir “As 20 mil léguas submarinas” de Júlio Verne e a impossibilidade de oferecer aos meus netos “Sandokan,o tigre da Malásia”,de Emílio Salgari.

Pois escreveu-me o Sr. António Lopes da Graça, leitor da “Mais Alentejo”, que simpaticamente não só mostrava o interesse lisonjeiro com que me tinha lido mas também se dispunha a fornecer-me informações práticas da maior utilidade no sentido de encontrar os autores referidos e outros “desaparecidos em combate”, dos quais também ele é um seguidor atento e interessado por entre as minas e armadilhas do nosso actual panorama editorial e livreiro. Fico-lhe muito grato e gostei muito de saber que os camaradas de armas de Sandokan e os admiradores de Emilio Salgari formam um exército bem armado e em número significativo, capaz de enfrentar as modernas armas editoriais de destruição maciça, com o nosso orgulho e pundonor.

Não fica por aqui o valor da “Mais Alentejo”.Reparem só no seu serviço inestimável no reencontro de amigos e na descoberta de desaparecidos. Acontece que o Sr. António Lopes da Graça, que como eu chora o fim da antiga editora Romano Torres, é um velho conhecido pois cruzámo-nos em Bissau em 1974,onde ele era responsável pelo estúdio de televisão da Marinha, naqueles anos de fim de guerra em que eu era um “roving reporter”a caminho de casa e me abastecia na prestigiada messe da nossa Armada na capital da Guiné. Um abraço amigo, António Graça!

UMA VÉNIA SENTIDA

CUMPRIRAM-SE recentemente os 100 anos sobre a data do suicídio de Emílio Salgari, cuja vida trágica merece ser recordada. Salgari nasceu em Verona, viveu em Génova e morreu em Turim. O seu sonho era ser marinheiro mas não terminou o curso da escola náutica e tudo o que fez foi um modesto cruzeiro, como passageiro, no Adriático. Mas como jornalista e escritor Emílio Salgari nunca deixou de navegar. Sulcou as águas em fragatas, galeões, bergantins, juncos e canoas, atravessou o golfo de Bengala, andou pelo Mar da China, rompeu as águas geladas do Ártico , viajou pelo Orinoco ,combateu nas Antilhas e subiu e desceu o Nilo inúmeras vezes.

Na realidade, navegou durante toda a vida pelos Atlas e pelas Enciclopédias e, desde o seu início como cronista, obteve um notável êxito junto do público. Nos seus últimos anos de vida, Emílio Salgari era o escritor mais lido na Europa e alguns dos seus 84 romances venderam acima da barreira, até então desconhecida, dos 100 mil exemplares.

Ironicamente, Emilio Salgari foi um prisioneiro da penúria, um refém da miséria, escrevendo como um escravo para editores que o exploraram e roubaram. Foi o esforço tremendo do seu trabalho que lhe permitiu sustentar uma mulher louca e filhos pequenos, mas foi também esse trabalho forçado que o empurrou para a morte, num dia em que, saturado de enriquecer aqueles que saqueavam o fruto do seu trabalho, sem que ele disso tirasse uma justa compensação, Salgari agarrou numa cimitarra e fez hara-kiri, deixando, com o seu cadáver, uma acusação terrível para os seus verdugos:”A vocês, que enriqueceram com a minha pele, mantendo-me a mim e à minha família numa quase miséria ou ainda pior do que isso, só vos peço que em compensação dos lucros que vos proporcionei, vos ocupeis da despesa do meu funeral”.

Há mais de meio século que eu viajo com Sandokan por onde Salgari quer que a gente vá. Neste tempo longo já se apagaram muitos amores e morreram muitas ilusões. Mas não posso esquecer a crueldade dos mares, a ameaça das selvas, o risco das viagens, o perigo das tempestades, o terror dos piratas, os ataques ágeis dos tigres, o poder das suas garras e a diferença clara entre o bem e o mal. Foi com tudo isto que Emílio Salgari educou gerações e nos ensinou a ser os homens em que nos tornámos quando, finalmente, acabámos por ser grandes.

«Mais Alentejo»

sábado, 10 de dezembro de 2011

Passatempo com prémio triplo

Está a decorrer, até às 12h do próximo dia 16 Dez 11 no blogue 'Sorumbático', o passatempo «Quanto indica a balança?», no qual serão atribuídos estes 3 exemplares autografados. Ver [AQUI].

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Sandokan, o Tigre da Malásia

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NUNCA IMAGINEI
a dificuldade que viria a encontrar para oferecer alguns livros de aventuras aos meus netos. Aquele que eu desejava mais, não dei com ele: "Sandokan, o Tigre da Malásia”. Os relatos de aventuras de Emílio Salgari são objectos muito raros e o seu autor é desconhecido na maioria das livrarias.

Os fantásticos livros de Júlio Verne são também preciosidades capazes de me darem uma alegria como as que sentem os velhos ratos de alfarrabistas, diante duma raridade. Foi com essa sensação, pelo menos, que comprei um exemplar das “Vinte mil léguas submarinas”...

A minha intenção era a de ajudar a desenvolver a capacidade criativa, a invenção e a imaginação, ligadas à aventura, nas crianças que bem poderão ser estimuladas com os mesmos instrumentos que iniciaram os avós, muito diferentes e muito antes das novas tecnologias trazerem o desejo de matar o chefe e subir de nível, o qual se procura incutir, desde muito cedo, nas crianças de hoje.

Confesso, humildemente, que foi nestes livros de aventuras que não só aprendi o gosto pela leitura , mas também desenvolvi a capacidade inventiva e fiz crescer a minha imaginação, viajando a lugares desconhecidos, encontrando a curiosidade pelo desconhecido e descobrindo o fascínio pelo diferente, tudo isto de formas muito distintas dos esquemas estereotipados dos actuais jogos e passatempos electrónicos.

A actual injustiça para com Emílio Salgari choca-me particularmente. Não bastou o terem levado a suicidar-se faz agora 100 anos. Nem a sua vida difícil e miserável chegou para lhe concederem agora uma homenagem justa, merecida e reparadora.

Custa-me ver tratado deste modo cruel e injusto um autor a quem prometo regressar, tão fascinante foi a sua figura e tão merecida seria - já que os netos nunca dele ouviram falar e desconhecem as suas aventuras fascinantes - uma vénia respeitosa dos avós, como eu, camaradas de armas do Tigre da Malásia.

«Mais Alentejo» de Setembro 2011

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

OS BEN ALI E OS ALI BABÁS

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NESTES ÚLTIMOS tempos, diverti-me mais com o Presidente Ben Ali, da Tunísia, do que com os nossos tristes candidatos à sorte de presidir aos destinos da gruta do Ali Babá.

Ergo-me e fico em sentido perante a dignidade e a coragem do povo tunisino, na rua, a dizer “basta” e a enfrentar os projécteis dos seus “democratas” em fuga. E curvo-me diante da dignidade dos antigos dignitários dos diferentes quadrantes da política tunisina, do Presidente Bourguiba para cá, porque em vez de baterem palmas à roubalheira, como nós vemos por cá haver quem faça, resolveram reunir-se e estudar soluções para os problemas da Tunísia.

O período áureo do presidente Ben Ali, de que os tunisinos agora se libertaram, bem podia dar origem a uma academia em Portugal, com dinheiros dos fundos sociais europeus, e a pólos de excelência nas nossas Jotas e nas nossas excelsas ONG e fundações, tudo para aprofundarem o saber.

O povo veio para a rua por não aguentar três coisas: o desemprego e os salários baixos duma economia amarfanhada; os impostos cada vez mais pesados e a subida dos preços dos combustíveis e bens de primeira necessidade; e a roubalheira desavergonhada dos “democratas” que estavam no poder em Tunes.

Basta referir que Ben Ali e sua família, a começar pela “madame”, que era cabeleireira, acumularam nestes aninhos de Governo mais de três biliões de euros desviados dos dinheiros públicos e dos bancos. E o genro de Ben Ali, casado com a sua filha Nasrine, tinha leões criados a bifes do lombo no jardim do palácio oferecido pelo sogro no dote do casamento.

Estes pequerruchos dos Ben Ali nunca fizeram nada na vida. Não são como os nossos pobres “boys” que têm de puxar pelo bestunto e esmifrarem-se nos ministérios, petróleos e na banca dum país falido como o nosso, cujos políticos seniores se arrastam de mão estendida pelo mundo, como os romenos e os albaneses andam a fazer nos semáforos das nossas cidades.

«Mais Alentejo» - Jan-Fev 2011

sábado, 20 de novembro de 2010

Três badaladas e um balde de cal

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FOI NO MÊS de Novembro que a “Mais Alentejo” juntou mais de duas centenas dos seus leitores, colaboradores, autores e anunciantes num Hotel Design de Tróia e, caldeando-os com autarcas do Alentejo, deputados da Nação, mulheres bonitas e figuras das artes, do desporto e do espectáculo, procedeu à entrega dos prémios atribuídos pelo seu público, num ambiente de festa, de requinte, boa mesa e alegre e discreta elegância.

Não faltava lá ninguém, o espectáculo parecia uma entrega de Óscares, não houve quem não estivesse agradado e a alegria durou até ás tantas.

Foi neste ambiente e nesta festa que houve quem resolvesse atribuir-me e entregar-me o Prémio Carreira - Jornalismo da “Mais Alentejo”. Posso ter muitas suspeitas, mas estou em crer que foi o António Sancho, a alma desta revista, o “culpado” disto ter acontecido. O que é uma injustiça, por haver outros mais merecedores. Mesmo que não pense assim, têm de concordar que me fica bem dizer tal coisa.

A verdade é que com o andar dos anos, uma pessoa vai acumulando distinções e assim, inesperadas, como foi esta, a sensação que se tem é a de os amigos estarem a despedir-se por termos alguma doença má que ignoramos e de que ninguém nos fala. Deus me perdoe, mas estes prémios de carreira, com que se celebra e se arruma uma vida de trabalho, assemelham-se a elogiosos obituários publicados pela secção de necrologia de uma publicação.

Se a minha saudosa avó Felicidade fosse viva, de certeza que não perdoaria. Punha o seu sorriso sardónico e dizia-me, com o carinho com que sempre me tratou:
-Oh filho! Depois disto, só três badaladas e um balde de cal…

P.S.- Deixem-me que deseje a todos os que aqui trabalham e aos que lêem esta revista um Natal muito feliz e uma passagem de ano cheia de alegria e felicidade.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Cães, gatos e olhares para o lenço

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UM QUERIDO amigo meu, que há muito não tinha o prazer de rever, desafiou-me a escrever histórias do passado, ocorridas comigo e com personalidades nacionais e estrangeiras dignas de destaque, bem como me exortou ainda a narrar factos importantes por mim vividos.

Confessei-lhe que já há muito me ocorrera semelhante pensamento, mas logo o abandonei por diversas razões. A primeira, é uma rejeição muito pessoal desse tipo de escrita, talvez inspirada, desde muito jovem ainda, por uma frase de Pittigrilli que nunca esqueci: aquele que escreve memórias é como um fulano que se assoa e depois olha para o lenço, antes de dobrar e guardar no bolso.

Depois desta razão principal argumentei com o meu amigo explicando-lhe ainda que ele não imaginava a quantidade de histórias adulteradas e narradas por falsas testemunhas ou participantes mentirosos, com má memória e sem vergonha nenhuma, capaz de jurarem a pé juntos terem travado um diálogo ou assistido a um facto que nunca aconteceram.

As inexactidões deste tipo são muitas vezes ditadas pela vaidade, pela inveja, pela desonestidade e pela pouca vergonha, ou ainda, ingenuamente, pelo desejo de ter graça. E uma coisa é contar histórias que podem ser corroboradas por alguém mais, que verdadeiramente as viveu, outra é fingir que se recorda acontecimentos e frases que nunca existiram com alguém, e de gente, que já não está entre os vivos e não se pode defender da calúnia e limpar-se de algo que nunca fez ou de alguma coisa que não proferiu.

Numa terra sem memória e cada vez mais à mercê de gente pouco séria que à memória exacta da verdade prefere a vaga ideia da mentira, é melhor não nos metermos nisso de recordações, a não ser aqueles destinadas aos filhos e netos estremecidos e amigos de confiança. De outra maneira, corremos igualmente o risco de parecermos um desses aldrabões de feira que nos contam o que mais lhes convém ou aquilo que os torna engraçados, e perder-nos nessa interminável multidão de cães e gatos que são autores. Ou, hoje em dia, conhecem algum cão ou gato que não tenha escrito um livrinho?
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«Mais Alentejo» - Nov 2010

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Para lá do resgate

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MÁRIO Sepúlveda foi o segundo a sair do horroroso pesadelo que engolira os 33 mineiros numa mina no Chile 69 dias antes, a uma profundidade de 700 metros. Extrovertido, exuberante, Sepúlveda foi de todos o que mais impressionou pela pureza do raciocínio e por acreditar em alguma coisa para além do resgate que comoveu o mundo entre terça e quinta-feira desta semana.

-Agora, por favor, não nos tratem como se fôssemos artistas ou jornalistas, tratem-me como mineiro, sou mineiro e morrerei mineiro - pediu o entroncado e sorridente mineiro aos mais de mil repórteres que registavam as suas palavras à saída da cápsula que o trouxera das profundezas, acrescentando:
-As leis e as condições laborais têm de mudar!

Após as trevas, as luzes da ribalta e certos misteres equívocos não fazem sentido para este mineiro e filho de mineiro de 40 anos de idade, que sempre acreditou no momento único de felicidade a que o mundo assistiu. Quanto ao desejo de melhores condições de vida e de trabalho a partir de agora, também comove haver quem ainda acredite e valorize o trabalho do homem. Infelizmente, tanta esperança só parece existir na cabeça de quem esteve tantos meses enterrado vivo.