segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

SALGARI IN MEMORIAM

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ESTA COISA de publicar o que se escreve tem, por vezes, aspectos muito agradáveis. Na minha última crónica nesta revista escrevi acerca da dificuldade dum leitor dos nossos dias encontrar livros de Julio Verne ou de Emilio Salgari e dei conta do que passei nas nossas livrarias para encontrar a “Viagem ao Centro da Terra”, a dificuldade em descobrir “As 20 mil léguas submarinas” de Júlio Verne e a impossibilidade de oferecer aos meus netos “Sandokan,o tigre da Malásia”,de Emílio Salgari.

Pois escreveu-me o Sr. António Lopes da Graça, leitor da “Mais Alentejo”, que simpaticamente não só mostrava o interesse lisonjeiro com que me tinha lido mas também se dispunha a fornecer-me informações práticas da maior utilidade no sentido de encontrar os autores referidos e outros “desaparecidos em combate”, dos quais também ele é um seguidor atento e interessado por entre as minas e armadilhas do nosso actual panorama editorial e livreiro. Fico-lhe muito grato e gostei muito de saber que os camaradas de armas de Sandokan e os admiradores de Emilio Salgari formam um exército bem armado e em número significativo, capaz de enfrentar as modernas armas editoriais de destruição maciça, com o nosso orgulho e pundonor.

Não fica por aqui o valor da “Mais Alentejo”.Reparem só no seu serviço inestimável no reencontro de amigos e na descoberta de desaparecidos. Acontece que o Sr. António Lopes da Graça, que como eu chora o fim da antiga editora Romano Torres, é um velho conhecido pois cruzámo-nos em Bissau em 1974,onde ele era responsável pelo estúdio de televisão da Marinha, naqueles anos de fim de guerra em que eu era um “roving reporter”a caminho de casa e me abastecia na prestigiada messe da nossa Armada na capital da Guiné. Um abraço amigo, António Graça!

UMA VÉNIA SENTIDA

CUMPRIRAM-SE recentemente os 100 anos sobre a data do suicídio de Emílio Salgari, cuja vida trágica merece ser recordada. Salgari nasceu em Verona, viveu em Génova e morreu em Turim. O seu sonho era ser marinheiro mas não terminou o curso da escola náutica e tudo o que fez foi um modesto cruzeiro, como passageiro, no Adriático. Mas como jornalista e escritor Emílio Salgari nunca deixou de navegar. Sulcou as águas em fragatas, galeões, bergantins, juncos e canoas, atravessou o golfo de Bengala, andou pelo Mar da China, rompeu as águas geladas do Ártico , viajou pelo Orinoco ,combateu nas Antilhas e subiu e desceu o Nilo inúmeras vezes.

Na realidade, navegou durante toda a vida pelos Atlas e pelas Enciclopédias e, desde o seu início como cronista, obteve um notável êxito junto do público. Nos seus últimos anos de vida, Emílio Salgari era o escritor mais lido na Europa e alguns dos seus 84 romances venderam acima da barreira, até então desconhecida, dos 100 mil exemplares.

Ironicamente, Emilio Salgari foi um prisioneiro da penúria, um refém da miséria, escrevendo como um escravo para editores que o exploraram e roubaram. Foi o esforço tremendo do seu trabalho que lhe permitiu sustentar uma mulher louca e filhos pequenos, mas foi também esse trabalho forçado que o empurrou para a morte, num dia em que, saturado de enriquecer aqueles que saqueavam o fruto do seu trabalho, sem que ele disso tirasse uma justa compensação, Salgari agarrou numa cimitarra e fez hara-kiri, deixando, com o seu cadáver, uma acusação terrível para os seus verdugos:”A vocês, que enriqueceram com a minha pele, mantendo-me a mim e à minha família numa quase miséria ou ainda pior do que isso, só vos peço que em compensação dos lucros que vos proporcionei, vos ocupeis da despesa do meu funeral”.

Há mais de meio século que eu viajo com Sandokan por onde Salgari quer que a gente vá. Neste tempo longo já se apagaram muitos amores e morreram muitas ilusões. Mas não posso esquecer a crueldade dos mares, a ameaça das selvas, o risco das viagens, o perigo das tempestades, o terror dos piratas, os ataques ágeis dos tigres, o poder das suas garras e a diferença clara entre o bem e o mal. Foi com tudo isto que Emílio Salgari educou gerações e nos ensinou a ser os homens em que nos tornámos quando, finalmente, acabámos por ser grandes.

«Mais Alentejo»

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